Alexandre B. Cunha
A pandemia de Covid-19 fez com que o Brasil e diversas outras nações adotassem políticas de confinamento. Apesar de haver variações de um país para o outro, de forma geral essas políticas são bastante severas. Argumenta-se neste texto que provavelmente esse é um acontecimento ímpar na história.
Aparentemente, nenhuma sociedade jamais adotou um confinamento que tivesse todas as seguintes três características:
(1) isolamento de pessoas que não sejam pelo menos suspeitas de portar um vírus;
(2) paralisação de vários setores da economia;
(3) duração superior a duas semanas.
Consequentemente, se somente um único país tivesse adotado a política de confinamento como a atual, então possivelmente isso já seria algo sem precedente. Esse cenário se torna ainda mais surpreendente quando se leva em conta que diversas nações estão a fazê-lo simultaneamente.
A bem da clareza e do rigor, é conveniente que se esclareça a razão para a utilização de expressões como provavelmente, aparentemente e possivelmente nos parágrafos anteriores. O motivo para tal procedimento é que o fato de este autor não ter localizado um registro de um confinamento como o atual não prova que um evento do tipo jamais tenha ocorrido. Afinal de contas, não é impossível que algo similar tenha acontecido e, por algum motivo, caído no esquecimento. Feita tal ressalva, este autor sente-se confortável em afirmar que ficará bastante surpreso se alguém vier a provar que em algum momento no passado a humanidade adotou uma política de confinamento com as características (1), (2) e (3) enunciadas acima.
O restante deste texto é dedicado à tarefa de explicar como se chegou à conclusão de que o confinamento com tais atributos é, muito provavelmente, uma política inédita. Quando este autor começou a meditar sobre a questão, ele se deu conta de que jamais lera ou escutara qualquer referência a tal política. Adicionalmente, pessoas mais velhas que ele consultou também não se recordavam de nada similar. Também não é razoável supor que algo como o atual confinamento tenha acontecido no passado e sido completamente apagado da história e da memória popular. Afinal de contas, a aplicação de medida tão drástica inevitavelmente teria sido registrada em jornais e livros e dado origem a anedotas, músicas etc. Ademais, tivesse a política em questão sido utilizada no passado, então os seus adeptos certamente lançariam mão de tal fato para defender a sua utilização nos dias de hoje.
As considerações acima fizeram que este autor conjecturasse que um confinamento amplo e duradouro como o atual era algo inédito. O seu próximo passo consistiu em levantar evidências sobre o assunto. Lembre que se está a questionar a prévia ocorrência de um confinamento que (1) isolasse pessoas que não sejam pelo menos suspeitas de portar um vírus, (2) paralisasse vários setores da economia e (3) durasse mais de duas semanas.
Não é difícil localizar reportagens e outros textos sobre epidemias e confinamentos pretéritos. Por exemplo, há uma matéria de 2015 no site da BBC mencionando que, devido a um surto de ebola, Serra Leoa havia adotado um confinamento generalizado. Contudo, a sua duração era de apenas três dias.
Outro episódio relevante para o problema aqui em análise foi a epidemia de SARS que afetou a China no final de 2002 e ao longo de 2003. Há um texto sobre esse tópico no site do Centro Nacional para Informações Biotecnológicas (uma entidade do governo norte-americano). Lá não há qualquer menção a um confinamento generalizado e de longa duração. Ademais, uma reportagem sobre as medidas adotadas na cidade de Pequim relata o fechamento de cinemas, discotecas, museus, igrejas e escolas, o isolamento de hospitais e a quarentena de pessoas suspeitas de estarem infectadas. Não se menciona nada como um fechamento de parte considerável do comércio ou uma proibição generalizada de ir às ruas.
Em 1918 ocorreu a eclosão da pandemia da gripe espanhola. Uma reportagem da BBC sobre esse episódio menciona a adoção de medidas como o fechamento de escolas, cinemas, igrejas etc. Adicionalmente, essa mesma reportagem afirma que “não houve a imposição de um confinamento generalizado” (There was no centrally imposed lockdown em inglês).
Também existem trabalhos científicos sobre as políticas adotadas para combater a gripe espanhola. O texto Políticas de Saúde Pública e a Intensidade Epidêmica Durante a Pandemia de Gripe Espanhola em 1918 (Public Health Interventions and Epidemic Intensity During the 1918 Influenza Pandemic em inglês) é particularmente relevante para o problema aqui discutido. Nele se estudam as medidas adotadas em 17 cidades norte-americanas para combater a gripe espanhola. De acordo com a Tabela 1, somente uma única cidade decretou um fechamento generalizado do comércio (community-wide business closures em inglês). As informações contidas no apêndice do artigo permitem concluir que a cidade em questão era Saint Louis e a medida esteve em vigor por um período de quatro dias.
Outra interessante referência é o notório estudo do Imperial College que induziu o governo britânico a implantar o confinamento. No último parágrafo do arquivo pdf que contém a versão completa do trabalho, está escrito que “jamais se tentou implementar uma política de saúde pública com efeitos tão perturbadores para a sociedade por um período tão longo” (no public health intervention with such disruptive effects on society has been previously attempted for such a long duration of time em inglês).
Em síntese, a evidência disponível sugere que jamais existiu um confinamento como aquele presentemente em curso no Brasil e em outras nações.
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