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Provavelmente nunca houve um confinamento como o atual

Alexandre B. Cunha

A pandemia de Covid-19 fez com que o Brasil e diversas outras nações adotassem políticas de confinamento. Apesar de haver variações de um país para o outro, de forma geral essas políticas são bastante severas. Argumenta-se neste texto que provavelmente esse é um acontecimento ímpar na história.

Aparentemente, nenhuma sociedade jamais adotou um confinamento que tivesse todas as seguintes três características:
(1) isolamento de pessoas que não sejam pelo menos suspeitas de portar um vírus;
(2) paralisação de vários setores da economia;
(3) duração superior a duas semanas.
Consequentemente, se somente um único país tivesse adotado a política de confinamento como a atual, então possivelmente isso já seria algo sem precedente. Esse cenário se torna ainda mais surpreendente quando se leva em conta que diversas nações estão a fazê-lo simultaneamente.

Mapa do confinamento em 25 de março de 2020. Em azul escuro os países com confinamento imposto pelo governo central, em azul claro os países com confinamento imposto por autoridades regionais e em cinza os países sem confinamento. Autor: Nice4What. Fonte: Wikimedia Commons.

A bem da clareza e do rigor, é conveniente que se esclareça a razão para a utilização de expressões como provavelmente, aparentemente e possivelmente nos parágrafos anteriores. O motivo para tal procedimento é que o fato de este autor não ter localizado um registro de um confinamento como o atual não prova que um evento do tipo jamais tenha ocorrido. Afinal de contas, não é impossível que algo similar tenha acontecido e, por algum motivo, caído no esquecimento. Feita tal ressalva, este autor sente-se confortável em afirmar que ficará bastante surpreso se alguém vier a provar que em algum momento no passado a humanidade adotou uma política de confinamento com as características (1), (2) e (3) enunciadas acima.

O restante deste texto é dedicado à tarefa de explicar como se chegou à conclusão de que o confinamento com tais atributos é, muito provavelmente, uma política inédita. Quando este autor começou a meditar sobre a questão, ele se deu conta de que jamais lera ou escutara qualquer referência a tal política. Adicionalmente, pessoas mais velhas que ele consultou também não se recordavam de nada similar. Também não é razoável supor que algo como o atual confinamento tenha acontecido no passado e sido completamente apagado da história e da memória popular. Afinal de contas, a aplicação de medida tão drástica inevitavelmente teria sido registrada em jornais e livros e dado origem a anedotas, músicas etc. Ademais, tivesse a política em questão sido utilizada no passado, então os seus adeptos certamente lançariam mão de tal fato para defender a sua utilização nos dias de hoje.

As considerações acima fizeram que este autor conjecturasse que um confinamento amplo e duradouro como o atual era algo inédito. O seu próximo passo consistiu em levantar evidências sobre o assunto. Lembre que se está a questionar a prévia ocorrência de um confinamento que (1) isolasse pessoas que não sejam pelo menos suspeitas de portar um vírus, (2) paralisasse vários setores da economia e (3) durasse mais de duas semanas.

Não é difícil localizar reportagens e outros textos sobre epidemias e confinamentos pretéritos. Por exemplo, há uma matéria de 2015 no site da BBC mencionando que, devido a um surto de ebola, Serra Leoa havia adotado um confinamento generalizado. Contudo, a sua duração era de apenas três dias.

Outro episódio relevante para o problema aqui em análise foi a epidemia de SARS que afetou a China no final de 2002 e ao longo de 2003. Há um texto sobre esse tópico no site do Centro Nacional para Informações Biotecnológicas (uma entidade do governo norte-americano). Lá não há qualquer menção a um confinamento generalizado e de longa duração. Ademais, uma reportagem sobre as medidas adotadas na cidade de Pequim relata o fechamento de cinemas, discotecas, museus, igrejas e escolas, o isolamento de hospitais e a quarentena de pessoas suspeitas de estarem infectadas. Não se menciona nada como um fechamento de parte considerável do comércio ou uma proibição generalizada de ir às ruas.

Em 1918 ocorreu a eclosão da pandemia da gripe espanhola. Uma reportagem da BBC sobre esse episódio menciona a adoção de medidas como o fechamento de escolas, cinemas, igrejas etc. Adicionalmente, essa mesma reportagem afirma que “não houve a imposição de um confinamento generalizado” (There was no centrally imposed lockdown em inglês).

Também existem trabalhos científicos sobre as políticas adotadas para combater a gripe espanhola. O texto Políticas de Saúde Pública e a Intensidade Epidêmica Durante a Pandemia de Gripe Espanhola em 1918 (Public Health Interventions and Epidemic Intensity During the 1918 Influenza Pandemic em inglês) é particularmente relevante para o problema aqui discutido. Nele se estudam as medidas adotadas em 17 cidades norte-americanas para combater a gripe espanhola. De acordo com a Tabela 1, somente uma única cidade decretou um fechamento generalizado do comércio (community-wide business closures em inglês). As informações contidas no apêndice do artigo permitem concluir que a cidade em questão era Saint Louis e a medida esteve em vigor por um período de quatro dias.

Outra interessante referência é o notório estudo do Imperial College que induziu o governo britânico a implantar o confinamento. No último parágrafo do arquivo pdf que contém a versão completa do trabalho, está escrito que “jamais se tentou implementar uma política de saúde pública com efeitos tão perturbadores para a sociedade por um período tão longo” (no public health intervention with such disruptive effects on society has been previously attempted for such a long duration of time em inglês).

Em síntese, a evidência disponível sugere que jamais existiu um confinamento como aquele presentemente em curso no Brasil e em outras nações.


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